segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Cultura, Identidade e Representação: a infância surda como uma trama cultural.

Ao iniciar esta breve discussão, é fundamental deixar claro que não existe a pretensão de falar sobre os surdos, pois preconizo aqui a necessidade de deixá-los falar por si mesmos. Partindo do contexto ouvinte, assumirei ao longo desta produção uma postura militante pela causa surda, ou seja, do respeito à sua diferença cultural, de identidade e língua.
O foco central da problematização travada brevemente, se detém na análise sobre a noção de cultura e identidade produzida pelos surdos na infância. Nessa posição, busco investigar vários aspectos relacionados à cultura surda: identidade, diferença, representação, estereótipos, discursos, currículo e a produção da infância surda. Nesta perspectiva, considero importante questionar: como ocorre a concepção de identidade cultural no contexto da infância? Como a criança surda constrói sua identidade participando ora de um ambiente ouvinte, ora de uma comunidade surda? Qual a sua noção de cultura e identidade surda?
Entendendo que a identidade somente passa a ter sentido num panorama discursivo de diferenças, ou seja, para que a identidade ouvinte se afirme, ela necessita da identidade surda, é possível notar que a identidade e a diferença são construídas na e pela representação.
O conceito de diferença não é utilizado como um termo a mais, dentro de uma comunidade discursiva, onde habitualmente se incluem outros como, por exemplo, “deficiência” ou “diversidade”. Estes, no geral, mascaram e neutralizam as possíveis conseqüências políticas, colocam os outros sob um olhar paternalista, e se revelam como estratégias conservadora para ocultar uma intenção de normalização. A diferença, como significação política é construída histórica e socialmente; é um processo e um produto de conflitos e movimentos sociais, de resistências às assimetrias de poder e de saber, de uma outra interpretação sobre a alteridade e sobre o significado dos outros no discurso dominante (SKLIAR, 2001, p. 06).
Quando nos reportamos à comunidade surda, o traço que a define culturalmente é a sua língua, ou seja, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Embora esta concepção pareça ser óbvia, muitos ainda não a desenvolveram. A cultura, quando abordada na perspectiva da pós-modernidade, aparece retratada como múltipla, multifacetada, visto que a compreensão de cultura muda e pode oscilar quando entendida dentro de novas tramas epistemológicas. Sendo assim, ela é vista pela diferença, cada espaço cultural se define pela sua história, suas especificidades, suas lutas e sua origem. A cultura é uma prática de significação e assim se torna um campo de luta em torno de uma produção de significados para o mundo social. Ela é uma relação social, uma relação de poder, uma prática que produz identidades, evidenciando que a cultura é um dispositivo de luta para a significação social.
O espaço escolar caracteriza-se por planejamentos, estruturações curriculares, estratégias de atuação e outras discursividades. Estas constituem os sujeitos que ali se fazem presentes. Ao longo do processo histórico, a educação de surdos esteve permeada por um viés clínico-terapêutico em que a centralidade do trabalho desenvolvido estava organizada nas estratégias de “normalização” desses sujeitos. Entremeio a essa produção discursiva, a constituição da identidade surda foi permanentemente representada pela incapacidade e pela falta de audição, especificamente, a deficiência. No entanto, vivenciamos uma temporalidade em que é possível interpretar e reinterpretar a participação desses sujeitos no espaço escolar.
Na articulação entre os Estudos Surdos e os Estudos Culturais em educação, torna-se possível compreender que as produções discursivas acerca dos sujeitos surdos, mesmo na educação de surdos, estão ainda fortemente arraigadas nas prerrogativas desenvolvidas pelos ouvintes. As representações culturais desencadeadas nas diversas relações sociais, ainda esbarram numa narrativa em que esses sujeitos são vistos como intelectualmente inferiores, sem uma língua própria – composta por gestos aleatórios – sujeitos sem cultura. Essa produção vem sendo reinterpretada pela estruturação curricular da escola de surdos em que as discursividades inerentes à cultura se tornam artefatos constituintes das identidades surdas.
O currículo, na educação de surdos, não pode ser interpretado como um elemento neutro de transmissão do conhecimento. Ao contrário, ele é um campo privilegiado de relações culturais. Sendo assim, os discursos que marcam a educação de surdos utilizam-se de elementos da cultura surda: a língua de sinais, as associações, a comunidade, a escola de surdos, mas produzem identidades ainda relacionadas aos pressupostos da cultura ouvinte, ou seja, atrelados às representações anteriormente referidas.
A contemporaneidade é compreendida como um espaço histórico em que as identidades são múltiplas. O sujeito dessa sociedade pós-moderna não estabelece uma identidade única, fixa e estável, ela é moldada a partir dos diferentes momentos e lugares em que ele se situa. Nesse sentido, a identidade deve ser compreendida dentro do campo cultural, a partir das produções dos discursos culturais. A identidade surda, nesse contexto, é o conjunto das características pelas quais os surdos se definem como grupo cultural, quais sejam, a língua, o currículo, a educação, a contextualização histórica das lutas, entre outros.
O sujeito ao nascer encontra-se inserido num contexto cultural, e sua identidade passa a ser compreendida como um artefato a ser constituído nesse meio. Tendo em vista que este trabalho focaliza a identidade surda e sua representação a partir dos Estudos Culturais, não é abordada a idéia de corpo danificado, mas de um sujeito cultural, com língua e identidade própria. Isso permite entender que a relação surdo-surdo é essencial para a constituição da identidade surda. Portanto, “as identidades surdas estão aí, não se diluem totalmente no encontro ou na vivência em meios sócio-culturais ouvintes” (PERLIN, 2001, p.54).
Considerando que as identidades surdas são identidades politicamente estabelecidas, o espaço da infância é propício para essa produção, na mesma medida em que se configura num momento importante para acentuação dos contatos com a comunidade surda. É numa produção social e cultural da infância e do sujeito surdo que as relações de poder se instituem, definindo as representações que estarão inscritas na educação para a diferença. No espaço da infância o sujeito introjeta as projeções sociais que se articulam em seu contexto de convivência, assim, a comunidade surda, bem como, o espaço da educação de surdos, são lócus para a constituição inicial de aspectos pertinentes à identidade surda. É pelo contato inicial, breve, mas rotineiro, que a criança consegue projetar nela a sua posição de sujeito pertencente à uma comunidade, à uma cultura.
A compreensão atual sobre a infância passou a ser historicamente constituída. Na proporção do contexto que envolve os séculos XVII e XVIII as crianças eram compreendidas como adultos em miniaturas, isso se torna visível pela arte, história e os retratos da sociologia. Contudo, numa desconstrução à proposta desenvolvida por Áries, a partir de 1970 e 80 ocorreu uma intensa crítica acerca da noção, por ele apresentada, de que a infância foi uma produção social da modernidade.
Assim, o sentimento de uma infância e de sua produção social, pode ter se tornado mais intenso no momento em que a escola, como instituição nova, passou a vigorar em seu sistema disciplinar. É compreendendo o espaço da infância como uma produção de sujeitos dóceis, que as relações de poder instituem as formas pelas quais essa produção será desencadeada. Isso na educação de surdos foi incisivamente instituído pelas produções ouvintes.
Tendo em vista que, a pretensão deste trabalho não é trazer respostas prontas, estratégias de atuação ou metodologias especificas, mas problematizações acerca dos discursos que envolvem a educação de surdos, torna-se pertinente frisar que é realmente possível uma educação para a diferença dentro do contexto da diferença, e que esta, por sua vez, pode ser compreendida como inominável a partir do momento em que se toma a identidade surda também como inominável por suas inúmeras particularidades e especificidades. Sendo assim, a infância é um território de significativas produções culturais, ela necessita ser problematizada como o espaço para a demarcação de práticas culturais específicas entremeio às produções curriculares que se concretizam nas afirmações da cultura surda.
É através das reticências, interpretadas como respostas líquidas (e não mais da estática dos pontos finais), que se pretende dar continuidade às futuras propostas de trabalho e planejamentos pedagógicos...

PERLIN, Gládis T. Identidades Surdas. In: SKLIAR, Carlos. (Org.) A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2001.
SKLIAR, Carlos. (Org.) A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2001.

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